quarta-feira, janeiro 24, 2007

José Régio...


Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!"

2 comentários:

linfoma_a-escrota disse...

APOCALIPSE

Soa tudo a vermelho novamente.
Apodrecem cascas no asfalto da cidade.
Depois de envernizado o chão escureceu.
Agora assemelha-se a
gota tresmalhada de tangerina estragada
pingando sobre o manuscrito reformado
daquela perfeição encontrada.
Pesadelo-surpresa em óleo fresco de
colunas desafinadas a desafiar estática
sem conseguir evitar de cometer
sempre os mesmos erros cegos.

Nomes números fora de tom e
mancham o passado com a ética
das ervas silvestres do adeus,
secas e ultrapassadas,
odeiam todas as especiarias, todos os sabores
dos teus olhos já não serem meus.

Assim quis
regozijar na dúvida do leito,
é prazer vazio
no teu mundo de brincadeira
procuras já alguém,
no meu peito é deserto enublado
preso à abdicação, à tua maneira,
à vivência entre bichos de metal maciço
num insustentável cansaço emoldurado.

Para mim
pessimismo e desistência são esculturas de marfim falso,
são doce masoquismo
são obsceno jogo de ténis onde ninguém perde
são infiéis ecos de prioridades gastas
que esfaqueiam a evolução
na mudança de rótulo ao código de barras,
sem serenidade para meu coração.

Fujo na competitiva adrenalina em
carnificinas circulares e enfeites de Natal
prevendo silhuetas e rotundas a chorar,
sozinhas, até é usual
a preguiça de apagar a dádiva desta chama e
encontrar alívio fora do hábito elíptico, na dor.
Criar um degradée de desgosto.
Ser o cinzeiro amarelo à tua cabeceira.
Esquecer a voz interior que declama o adeus ao amor.
2002
joão meirinhos in fotosíntese

www.motoratasdemarte.blogspot.com

Esquilo disse...

Para além dos belos textos...
Melhor ainda sempre bela musica...
Foi a primeira vez que vim a este blog...